Rajada de Pincel: Curadoria: Paula Scavazzini | Gruta, São Paulo

2 - 30 Março 2024
Apresentação

Há aproximadamente um ano, Camila Bologna, co-fundadora e diretora do espaço expositivo Gruta, em São Paulo, entregou-me a missão de realizar a primeira curadoria de uma exposição desenvolvida por uma artista no espaço. Para Camila Bologna, “esse convite nasceu da intenção de realizar um ajuntamento de duas noções que permeiam o trabalho da artista Paula Scavazzini: o convite ao olhar da pintora e enquanto a idealizadora de uma exposição, projeto que tem como fundamento conversar e pensar a pintura contemporânea”. “Paula mostrou-se uma pesquisadora no assunto e demonstrou manter a prática da escrita e reflexão no seu dia a dia. Com seu conhecimento sobre pintura e bom relacionamento com outros artistas, sua pesquisa se desdobra para exposição coletiva intitulada ‘Rajada de Pincel’”, concluiu Camila. Da mesma forma, essa também será a primeira vez que, assumindo o papel inédito de curadora, moldarei uma exposição a partir da minha própria pesquisa artística, referências, interesses, proximidades e desejos. Esse último item é crucial na minha prática como artista, que agora trago para este fazer curatorial. Para Vladimir Safatle, que escreveu no magistral “Cinismo e Falência da Crítica”1 , tanto pulsões quanto desejos “não são sistemas causais irredutivelmente individuais e através da socialização de tais pulsões e desejos internalizamos processos gerais de orientação do julgamento e da ação”. E complementa: “Ou seja, através de tais processos de socialização internalizamos padrões gerais de racionalidade que tendem a guiar o comportamento social”. Hoje eu acredito, em relação a “Rajada de Pincel”, tratar-se de uma exposição de uma pintora desejando e escolhendo pinturas. Considero que, tanto o conceito da Gruta quanto o seu novo espaço físico são ideias para desenvolver este tipo de projeto que, pra além de inusitado no meu percurso, é livre, experimental e um tanto intuitivo. Ademais de ser uma forma de apoiar a Gruta, que abraçou a missão de horizontalizar as relações dentro das Artes Visuais — o que acredito ser de grande valor para o meio e, principalmente, para nós, artistas. Por conta dos meus dois anos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e, posteriormente, a minha formação em Artes Visuais, imagino “Rajada de Pincel” como uma exposição de pintura que flerta, justamente, com o pensamento arquitetônico, assim como fiz em minha exposição individual, em 2022, intitulada “Estranhamente Familiar”, no Projeto Vênus, também na cidade de São Paulo. De certa forma, talvez quase metaforicamente, vou buscar compor uma “pintura em escala arquitetônica”, através de cinquenta outras pinturas, de oito diferentes artistas. Como se cada pintura escolhida fosse um dos gestos agigantados desta “pintura espacial” — como se eu estivesse “pintando com pinturas”. Por exemplo, a pincelada azul e espessa é representada pela pintura “Enxurrada”, feita em 2019, por Tiago Carneiro; a repicada e prateada vem na forma da pintura “Celebração” (2023), de Béatrice; Heloísa Franco nos traz a pincelada marrom e translúcida, com a pintura “Catarata”, também de 2023. A pintura “Chamada” (2023), de Thany Sanches, revela a pincelada na cor de um tipo de bege esfumado; já Maria Klabin, por meio de “Auto-retrato” (2021), presentifica a pincelada longa, em um tom de vinho; Daniel Lannes é a pincelada roxa e certeira, com a pintura “Carmen” (2023) e, por fim, viva, porém cinza, vem a pincelada de Lucas Maia, com a pintura “Lembrança do inverno e solidão” (2023). Para além da escolha destas pinturas e de dispô-las no espaço com o intuito de compor uma “grande pintura”, busquei potencializar tais relações através da construção de um possível site specific, por assim dizer, — por meio de algumas intervenções pictóricas nas paredes em meio às “pinturas-pinceladas”, unindo e afastando umas das outras, criando continuidades, desdobramentos e narrativas, levando em consideração seus pesos visuais, dimensões, imagens e o diálogo com o interior da Gruta. Por falar em uniões, afastamentos, estórias e no termo que vem permeando as minhas pesquisas desde 2021 — o “Unheimlich”, ou estranhamento familiar, descrito por Sigmund Freud em 19192 —, esta exposição aproxima trabalhos que me são desejantes e que podem inquietar o espectador pela audácia contida em cada um deles mas, principalmente, pelos seus gestos familiares. Gestos que têm, a meu ver, importâncias por vezes maiores do que as próprias cores ou as imagens criadas sobre as superfícies das telas. Analogamente, a dupla de artistas austríacas Jakob Lena Knebl e Ashley Hans Sheirl trataram de familiaridades em sua última exposição “DOPPELGANGER!”, no Palais de Tokyo, que aconteceu em Paris, entre outubro passado e janeiro deste ano. Nela, a dupla construiu, como por elas relatado, um universo específico a partir da arquitetura do próprio espaço expositivo, como o título da mostra — uma palavra, em alemão, que conota “a possibilidade de existir alguém no mundo que se pareça com você e com quem você possa ser confundido. (…) Brincamos, portanto, com essa ideia de duplo, mas também com a ideia de projeção de si no outro numa relação. Sempre há idas e vindas entre você e eu.” Com isso, podemos pensar que, talvez, este grupo apresentado no âmbito de “Rajada de Pincel” seja formado por potentes “gestos-irmãos”, mesmo que vindos de mundos e vivências distintos. Há um contato platônico e íntimo com os trabalhos dos artistas que irão compor a mostra. No plano que chamo de platônico, destaco o trabalho de Daniel Lannes, Maria Klabin e Tiago Carneiro. No âmbito íntimo há artistas cuja produção acompanho há alguns anos, como Béatrice, Heloisa Franco, Lucas Maia e Thany Sanches. Ambos os grupos, é preciso esclarecer, não apenas são alimentados pela admiração que sinto por suas obras, mas também por nutrirem o interior da minha própria pesquisa artística. Espero, ao reuni-los em um só espaço, possibilitar ao espectador melhor enxergar as conexões que aponto para além da partilha do uso da pintura a óleo sobre tela e da proximidade entre algumas das gerações, bem como as similaridades de suas características pictóricas, especificamente suas rápidas e precisas pinceladas como rajadas sobre as tela — caras, também, ao meu fazer pictórico. Enfim, como é habitual em processos, predominantemente, instintivos, acredito que o tempo e o consequente distanciamento desta exposição nos trarão ainda mais clareza sobre o que foi construído imageticamente e levarão a outros desejos rajantes. Paula Scavazzini. São Paulo, 09 de fevereiro de 2024.

 

1.SAFATLE, Vladimir. “Cinismo e Falência da Crítica”. São Paulo: Boitempo, 2008: 216p. 2. FREUD, Sigmund. “O inquietante”. História de uma neurose infantil (O homem dos lobos): além do princípio do prazer e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2O1O: 328-376.

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